15 junho 2006

Ponto de vista



— Amor, amo-or — ela sacode o coitado como um terremoto asiático.
— Ai, que foi, coração? Me deixa dormir... — ele continua de olhos fechados.
— Adalbertôôô, me escuta!
— É barata? Pisa nela que passa...
— Não, engraçadinho, é outra coisa...
— Pulga? Mosquito?... Dengue? — ele continua imóvel.
— Adalberto... Tem alguém me olhando... dali de fora, ó...
— Faz tchauzinho, Gi, e dorme pelamordedeus!
— Tá louco? Cê não me leva a sério mesmo, né? Tô aqui sendo observada por sabe-se lá o quê e você nem aí? Ah, faça-me o favor, viu!
— Não vi nada e tô aqui, sim, no quinto andar... não tem ninguém te olhando lá de fora...
— Tá me chamando de mentirosa, é?
— Nããããão... ó, faz assim... fala aí pro Homem Aranha que ele é legal e tudo, mas que já é tarde e que ele devia ter vindo me visitar quando eu era criança. Cara mais atrasado!
— Muito engraçado, Sr. Bom Humor. Ai, que mal eu fiz pra ter um Adalberto na minha vida?!
— Casou comigo, fofa. Foi você que quis...
— Fofa é a senhora sua mãe! E, se você não se lembra, foi você que me pediu em casamento e ficou me atormentando pra casar, porque eu tava começando a me interessar pelo lindo do Kaká! Mas olha a burrada que eu fiz! O cara tá lá, jogando na Alemanha, na seleção, ma-ra-vi-lho-so, e eu aqui, casada com quem, com quem? Com o Adalberto!
— Ué, eu tava parado lá no altar, na minha, você é que foi até lá...
— Você tá querendo apanhar, né?
— Violência doméstica é crime, Gislaine. Eu te denuncio, tá pensando o quê? — e se ajeita ainda mais no travesseiro.
Ela olha para ele, incrédula. Furiosa com o descaso, descruza os braços e sacode ele novamente, agora como um tsunami, e quase joga o coitado pra fora da cama:
— Eu tô falando com você-ê-ê-ê, seu advogado de meia-tigela!
—Fala aí... pro ET... te levar pra dar uma volta no disco voador dele, fala! Vai lá, Gi, dá umas voltas com o camarada... mas me deixa dormir!
— Você tá fazendo piadinha?! Escuta aqui: você é meu marido, tem obrigação de me ajudar nas horas de necessidade, você prometeu isso lá no altar, lembra? Então, eu não consigo dormir com aquela coisa me olhando, me ajudaaaaaaaa....
— Hã? Falou comigo?
— E ainda por cima não me ouve! Isso é provocação, né? Só pode!
— É que... frase grande... eu perco... o raciocínio...
— Vai perder é o rumo já, já se não me escutar e olhe lá! Olha que eu grito, hein, Adalberto!
Mediante a terrível ameaça, ele abre o olho direito.
— Cadê?
— Cadê o quê?
— O que eu tenho que olhar...
— Ali, ó — e aponta para a janela com a persiana aberta.
— Não tô vendo nada...
— Abre o olho, infeliz! Você tá de olho fechado e ainda por cima é míope... sem óculos não vai ver nada mesmo! Tudo porque você não mandou arrumar a persiana emperrada, né, Adalberto?
— Ah, tá... Róóóóóónc
— ADALBERTO!
— Hã? O quê? Cadê o telefone? Atende logo!
— Que telefone o quê? Pirou, foi? Você tava roncando e me deixou falando sozinha. Aí eu berrei.
— Hã? Cê... não tá.... sozinha... bem...
— Não tô mesmo. A coisa continua me olhando!
— Róóóóóóóóóóóóóóóóónc
— ACOOOOOOOOOORDA! — O grito abriu os dois olhos do coitado.
— Tá bom, tá bom... Uááááááááááá... cadê a barata?
— Olha ali, ó, na janela...
— Não tô vendo nada... A barata tá na janela?
— Põe os óculos, Adalberto! Caramba, eu tenho de te falar tudo!
— Pronto... o que é aquilo? Você tá bêbada, Gislaine? Aquilo ali não é barata é nunca!
— Eu é que te pergunto! Quem falou de barata? O bêbado aqui é você!
— Olha aqui, minha filha, não ofende...
— A próxima vez que você me chamar de “minha filha” eu te jogo pela janela com coisa e tudo!
— Gi, você precisa se tratar, anda muito estressada, que horror! Cadê a sua qualidade de vida? Só comer sucrilhos de manhã não adianta, não, sabia? É tão nova pra ficar assim, parece aquelas velhas ranzinzas. Desse jeito sua pele vai ficar toda cheia de bolinha e...
— Não muda de assunto, Adalberto! E velha é a sua avó! Tá vendo? Não dá pra dormir com esses olhos em cima da gente desse jeito. Me incomoda... Parece até que tô no Big Brother, não tem condição!
— “Ai, não dá pra dormir com esses olhos em cima da gente desse jeito”, nhenhenhém, bã... — ele arremeda. — Tá bom, vai. Vou fazer essa caridade pra você. Xô, xô, sai daí, coisa! Olha só, você tá vendo, né, Gislaine? Eu tô fazendo a minha parte... a coisa é que não tá nem aí pra gente...
— Ih, já vi tudo... Mole desse jeito você vai é levar a madrugada toda pra resolver a situação. Quer saber? Vou dormir na sala! Fui, Adalberto, fui! Se vira aí você com a coisa. Dois estáticos, Deus me livre! Quanta falta de atitude!
— Isso, vai logo e pára de me atormentar, mulher louca! Trabalha tanto que fica tendo alucinação durante a noite e ainda estraga o sono sagrado de um marido exemplar feito eu! Eu vou te contar, viu?! Não basta ser um deus grego, preciso é ser um santo pra aturar uma criatura feito você. Adalberto pra lá, Adalberto pra cá. Cadê a sua independência? Hein? Hein? Me fala? Essa mulherada é tudo igual! Na hora do desespero, apelam. Pra quem? Pra quem? Pro Adalberto! Lógico! Tudo eu, tudo eu! E eu é que não tenho atitude?! Era o que me faltava! — ele se vira em direção à janela e continua: — E você, hein? Tá olhando o quê? A curiosidade matou um gato, tá sabendo?! Coisa mais enxerida! Fica aí, abelhudando no casamento dos outros! Tá vendo só o que você fez? Praticamente destruiu um matrimônio! Amanhã, quando eu chegar no escritório, vou entrar com um processo contra você! É isso mesmo! Vou te depenar, sua coisa destruidora de lares, por calúnia, difamação e danos morais! Pensa que vai ficar impune, é? 'Xá comigo!

Aquele par de olhos lá, fixos, olhando para ele, observando tudo, admirado.
O coitado cala a boca e olha fixo para a coisa. Faz umas caretas, e nada. Tem um siricotico na cama, numa crise de sono maldormido, e nada. Mostra a língua, se cobre com o lençol, fica em pé em cima da cama e faz “bu!”, dispara o alarme do rádio-relógio de repente, ataca o chinelo no vidro da janela, dá um berro, come a paçoca guardada na gaveta do criado-mudo desde o ano passado e assopra o farelo no vidro, amassa o papel do nada pra tentar ser assustador, acende e apaga o abajur quinhentas vezes enquanto canta O Passo do Elefantinho arregalando o olho... e nada.

-o-o-o-o-o-o-o-

— Gi... ô Gi... Volta aqui, Gi... por favor... Olha que eu choro, hein? Voltaaaaaaaaaaaaaa....
Ela não responde. Está no décimo sono no sofá da sala, coberta até as orelhas.
— Giiiiiiiiiii-i, tô falando com você!
— Róóóóóóóóóóónc!
— Gislaine Regina, venha aqui agora! Não dá pra dormir com essa coruja idiota me olhando!



10 comentários:

Anônimo disse...

Hahaha!
Adorei o machão passando por maus bocados no final...
Gislaine Regina... hehehe
Eu li primeiro, lá lá lá lá lá lá...
Andreia

Anônimo disse...

Muito dez o texto.....

Ri pra caramba... rsrsrsrs

E a foto então...

Crédito: Eduardo Lima

Gostei disso, me achei SUPER importante...

Bjinhus

Eduardo

Anônimo disse...

Tenho certeza que o meu fim vai ser esse. Mas sabe, ainda tenho medo de que quando eu casar todo esse romantismo despreocupado do namoro vire algo parecido com o relacionamento do casal do seu texto.
É, talvez seja divertido.

Anônimo disse...

hahahahahh!
Muito bom!
bjs
Jana

Anônimo disse...

Mais um endereço para colocar em Favoritos. Mais um talento de Kandy. Que lugar mais gostoso de visitar!

Agora me conte... Onde arruma tempo para o blog? Fizeram um clone seu! É a única explicação! Quem o fez? Onde você o esconde?

Anônimo disse...

EM TEMPO — Adoro corujas!

OBS.: continuo aguardando explicações sobre a clonagem.

Anônimo disse...

Kandy, li todo o conteúdo, desde o primeiro post. Volto a este, no momento o mais recente, para fazer outro comentário.

Uma coisa muito positiva em seu blog é que ele não pode ser "rotulado". Gosto disso. Rótulos costumam ser ruins. Eu mesmo, como autor, fujo deles.

Em um dia você escreve um texto muito lúcido sobre o MLST, por exemplo; no outro dia vem um texto leve, inteligente, DIVERTIDO. Ponto para você!

PS: Lembro-me daquele fato sobre Quito, capital do Equador. Eu devo ser também do outro mundo, porque sempre soube dessa capital. E de tantas outras. Não sei por qual razão eu sempre tive facilidade para isso. Havia competição na minha escola; eu sempre ganhava. Pelo menos isso, minha cara, pra compensar a negação que sempre fui em exatas! Ora!

;-)

Anônimo disse...

Muito bom kandy !!!!
O passo do elfantinho foi o melhor.. hahahahahahaha

bjs

Anônimo disse...

hauhauahuahaha
Muuito bom Kandy!!!
hauahuah To rindo mto aki!!!
Parabens pelos textos!!!
Bjus
Camilla

Anônimo disse...

Visitei teu blog por acaso e "olha que coisa mais linda mais cheia de graça" esse texto. Parabéns!
Pela mente criativa e o bom humor (essencial na vida do ser humano).

Até +
Cássia

Se sentir vontade visite
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